Protagonistas da dor pedem abrigo

Conturbada por problemas domésticos resolvi perambular em um universo díspar, já não podia ignorar a vida apenas com a literatura, precisava provar outras realidades cotidianas. Sair do meu umbigo para compreender novamente o mundo de forma ampla.

Entrei neste universo ignoto como quem não quer nada. Nas primeiras horas fiquei quieta como uma xícara. Porém, aos poucos, fui arrebatada e tudo mudou...
O menino deita-se de papo pro ar e mira o espaço vazio - sem desenhos em nuvens azuis e brancas ou arco-íris. Inquieto, por dentro, depois de um longo tempo, tenta pegar o sol com a mão; estende-a, fita o sol quente entre os dedos. Nada existe. Nenhuma promessa de bom futuro, nenhum pássaro rasgando o céu aparece para lhe arrancar um pequeno sorriso. Ele não acredita em fadas, anjos, santos ou duendes, nem conhece Deus. Tenho vontade de despertá-lo, arrancá-lo do solo cáustico. Mas, covardemente, o observo como uma mosca.
A solidão vertiginosa acabrunha o coração infantil. A dor não espera a maturidade, invade o berço e faz morada. Como o vento selvagem passa levando frutas e flores frágeis que acabaram de brotar. Leva também o brilho nos olhos, o corpo se abala e é tomado por um pesado tédio aflitivo. O menino espera, deitado, sem esperança. Eis o fatalismo russo?! A exemplo do soldado sem força, cansado e sem poder, deitado imóvel sobre a neve. “Não aceitar absolutamente nada, não levar mais nada, não tomar mais nada, não ingerir nada, não levar mais nada para dentro de si – não reagir”, é o lema.
Adentrei na casa verde com o coração aberto, mas apertado, sem saber o que iria encontrar. O menino correu e me ofereceu um galho de uma planta qualquer arrancada do jardim sem flor; o peguei pelo braço amorosamente, beijei sua testa e agradeci. A verdade é que eu não sabia como tratar àquelas crianças, lembrava as palavras de Nietzsche: “a recordação é uma ferida opulenta”.
Maria deixava o bebê sozinho em casa para catar a vida em um lixão. Marcelo esquecia a paternidade e adentrava no corpo da pequena Nina. Zita em ataques constantes de fúria arrebentava o inofensivo João. Bruna começou a chorar ainda na barriga da mãe, a infame tentava ininterruptamente lhe tirar a vida. Josenilde até sente falta dos filhos, mas cumpre doze anos de detenção. Eu poderia contar, no mínimo, 350 histórias escabrosas como estas – número de crianças recifenses abrigadas pelo Estado, Município e ONGs contra maus tratos.
Depois de certa familiarização cinco crianças vêm para cima de mim. Nina faz uma cuidadosa trança nos meus cabelos longos, os cheira, coloca na boca, mastiga. João brinca com os meus anéis, puxa meus dedos para estralá-los. O bebê dentro do cercadinho me lança um sorriso meigo, convidativo, fixa os olhos em mim com um pedido, quer que eu o pegue. O menino, quente, deita no meu colo, coloca minha mão sobre a sua cabeça e hiberna, para num dia vindouro acordar a dor adormecida. 


Belisa Parente



* Os nomes são fictícios para preservar a identidade das crianças e dos monstros agressores.

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