CARTA LONGA

 


A tempestade parece não ter fim, o mundo é um vírus invisível como nós, somos invisíveis e estamos cada vez mais distantes apesar de contagiados. Você me esconde, eu te escondo, você me evita eu te bloqueio - temporariamente. Penso em me tornar vegetariana, parar de fumar e beber, mas não vou me dobrar a indústria farmacêutica, à caretice, ao sistema, não vou tomar Rivotril.

Ainda penso em morar com você ou me satisfazer ao te mandar mensagens bêbadas no fim de semana. Apesar do nada tudo, desse tempo todo, o que fizemos enquanto esperamos?... Você desdenha da sorte, eu passo o pano na morte, você brinca de ser feliz, eu lanço os dados para longe.

Quero relembrar o cheiro do seu suor, cuidar das suas unhas roídas, arrumar os seus cabelos crespos, costurar as suas camisas, te alimentar de amor. Semear a existência é bom, se existe essa possibilidade, você me diz e a gente pensa, inventa...

Por você, só por você, eu suportaria os bandidos.gov, as polícias e as milícias, a água não geodesia, as balas perdidas. Eu sempre tive a sensação de que poderia morrer a qualquer momento, talvez por isso preze tanto pela vida e tome chá de moringa. Talvez essa seja a origem da rebeldia, ou melhor, do anarquismo.

Não quero acordar amanhã e me arrepender de não ter dito isso tudo por carta, desculpa se isso te traz um sentimento estranho, denso, ou se te fiz esperar... tento viver no presente e manter a alegria meio ao caos, também detesto incomodar, seja a mim mesma ou outra gente, seja planta, seja bicho, seja isso bom ou ruim.

Uma cartomante renomada me disse: “ele gosta muito de rua, não combina com você”. Também disse que você gosta mais de homem do que de mulher, assim bem crua, mas sinceramente eu ainda não me convenci disso. Prefiro relaxar e dar vazão aos sentimentos, acreditar que tudo pode ser ou não, cheia de esperanças e desesperanças, viver essa dicotomia mágica plenamente. E enfim, da noite para o dia, sublimar...

Por isso esperei até a última hora para te escrever, hesitei até onde pude por vários motivos, me sinto desnuda ao confessar os meus sentimentos assim, as minhas emoções primarias ganham vida neste papel. Depois, cartas de amor estão em completo desuso, se tornaram até assustadoras – as pessoas desaprenderam a amar, os Correios entrou em greve mais uma vez, querem privatizar os nossos corações.

Sei também que o inesquecível é costumeiramente esquecido, depois de seis, sete, dez, vinte anos... por isso escrevo também, desejo guardar cada gota deste romance no livro da vida. E no fundo admiro a minha coragem, se assumir assim ao outro é difícil, traz insegurança, medo da rejeição, nos faz parecer frágeis, de menor valor. Confesso que também me perguntei algumas vezes: - Será que ele merece?

Te juro, não escrevo por diversão, escrevo porque te amo, porque você me faz bem! Você está conectado a mim e ainda é tudo muito nebuloso, não sabemos no fundo onde queremos chegar... o mundo é tão grande e temos tanto a realizar, podemos ir juntos ou separados, precisamos escolher, definir melhor as coisas.

Por via, a verdade é que às vezes penso ser capaz de apanhar os cocôs dos seus cachorros, de ser o homem e a mulher da casa, de te nutrir completamente. Entretanto, quando se têm filhos fica difícil dar a atenção necessária a tudo, todos e todas, é muito trabalhoso para uma pessoa só...

- sabe por que é impossível fazer um bebê sozinho? Porque é inumano cuidar de uma criança sozinha. Também preso muito pela minha individualidade, preciso de tempo para mim, preciso me olhar no espelho.

Eu tenho fé no irrevogável mesmo nesse tempo louco de pandemia, de resposta extrema da terra, e isolamento social, escrevo com quase 100 mil pessoas em baixo do chão. Em plena transição planetária, ainda resistimos. E detesto picardia, experimentei bastante, você também merece isso, contudo, sou clássica e tenho netuno na casa 7 - preciso racionalizar, não posso mais me iludir.

Não quero te imprimir mais responsabilidades, por isso é preferível você vir até mim, eu fui até você da última vez, lembra? Você quer vir? A janela, a porta, a sala está aberta, eu ainda quero adotar cachorros e gatos, posso esperar até o próximo ano, não mais do que isso. A espera cansa o amor, não quero nos desgastar, é preferível acabarmos antes.

Você me prova com um misto de medo e paixão, circunspecto, você é melhor com as palavras do que eu, e me analisa, analisa, analisa exaustivamente. O que mais você precisa saber? Você fincou o pé no meu coração, ramos floridos cresceram do ventre ao cerebelo, e desde então não consigo deixar de pensar em você.

Sou grata por você existir e me fazer sentir, você prendeu a minha natureza selvagem em pensamento por tanto tempo, isso é algo raro, és. Também não sou uma pessoa insistente, a minha única obstinação é a escrita, nunca vou pular no seu pescoço e te agarrar, nem vou fingir ser quem eu não sou para te agradar.

O seu coração mesmo assim me quer, mas o seu cérebro insiste em me negar, então... deixa para lá? A vida é amiga de verdade, sempre me acudiu, me consolou e me levou ao amor matematicamente possível. Apesar do esforço próprio ainda ser insuficiente, no sentido preguiçoso do tempo, de querer te conquistar.

O acaso vai decidir por mim e por você, desatar ou atar de vez. Não tenho visão prática da vida, do mundo, futuro, se eu deixar o impulso passar não terei coragem de enviar esta carta. E se se eu não obtiver resposta... tá tudo bem também, amor, darei por encerrado esses três anos nessas três páginas, a lembrança de um amor longo, irremediável, valioso. Não me forço, mas me forço, necessito de um divisor de águas, pois te amo além da imagem e do som, para além do carma.

 

 

 

Belisa Parente

 Recife, junho de 2020


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