Caso de amor

Zaíra chegou cedo ao Mosteiro de Nossa Senhora da Luz. Seus olhos não tinham o mesmo viço, o sorriso havia saltado do rosto, a tez estava pálida e suas mãos firmes agora tremiam. Não era uma simples indisposição matinal, o que lhe afligia era algo muito difícil de aceitar.

- A felicidade irrompe-se em doses curtas e efêmeras - pensava cabisbaixa na intempérie da vida, na realidade atropelando o êxito da paixão.

Ouviu então um bramido à beira da água e, dirigindo-se para lá, viu um gato rondando o retábulo. O susto a fez despertar dos pensamentos iniciais, sua mente agora se dirigia para a imagem de Nossa Senhora da Luz, petrificada, com o nariz descascado e olhos sem cor. Lembrou-se, então, da simbologia da imagem. Nesse ínterim, uma luz diferente, azulada, entrou como um flash rasgando o espaço. Olhou para trás de súbito, pensando ser o reflexo do relógio de alguém, mas não havia mais ninguém no local, o Mosteiro só abria as dez para visitação.

“A luz é invocada como sendo a imagem do próprio Criador e a água, fonte de vida” – disse inquieta, um pouco amedrontada, lembrando os escritos antigos.

Zaíra agora pensava na fonte da sua vida. Para muitas mulheres, o amor pelo marido ou filhos é essa fonte incessante, que as movem todos os dias. Na noite anterior ela chegou em casa super entusiasmada, tagarelando sua felicidade ao marido, queria sair para festejar a conquista do mais alto patamar da sua carreira. Zaíra havia recebido um convite para trabalhar em Lisboa, na restauração de uma igreja ermida em Carnide, e nem precisaria trabalhar em ornatos antropomorfos ou zoomorfos, o altar de Nossa Senhora da Luz não têm excessos decorativos.

Foi tomar outro banho de água fria enquanto lágrimas deslizavam no seu corpo, penetrando no seu nariz, boca, umbigo. Chorou durante uma hora como um bebê desmamado, seu corpo pesou e foi caindo lentamente, desmaiou de tristeza. Primeiro achou que o marido não a amasse, depois, compreendeu o que uma amiga havia lhe dito e no momento foi incompreensível, soou irreal. A competição havia destruído o casamento da amiga, o marido não suportou o êxito profissional da companheira e o relacionamento aos poucos ficou intragável. "Sorte na profissão, azar no amor" - dizia sem pesares a amiga.

Zaíra conhecia a lei do perde e ganha, do ganha e perde. Sabia que o triunfo pede abdicações e agora colocava tudo na balança. Estava arrasada com a atitude de Ivo - um alto executivo de uma multinacional. Além de não querer comemorar sua promoção, com a simples desculpa de que estava cansado demais, ainda jogou terra na viagem. - "Uma viagem agora não é propícia" - disse sem maiores argumentações. É. Talvez ele tivesse razão, talvez soubesse o que o coração de Zaíra pedia.

O casamento de dez anos estava em jogo. Zaíra e Ivo nunca tiveram filhos, nem fizeram exames para descobrir se um deles é estéril; pensaram em adotar uma criança, mas Ivo temia uma possível hereditariedade assassina. A união conjugal sem o concebimento de um novo ser mexia com os sentimentos mais íntimos de Zaíra, porém, aparentemente, seu corpo não mostrava isso. Ela parecia mesmo uma mulher autosuficiente, segura de si e dos outros, uma força adocicada. Foi justamente essa firmeza que a fez ascender profissionalmente, suas mãos livres e firmes, quase independentes do resto do corpo. Mas os cacos iam direto para o seu íntimo sem que houvesse ninguém para restaurá-los.

Zaíra já não falava dentro de casa, tratava Ivo com cordialidade, nenhum afeto espontâneo, verdadeiro. A avalanche interior queria sair pelas portas e janelas, queria ganhar o mundo, mas Zaíra, insegura, a repreendia como podia. Aos poucos Zaíra deixou de se afirmar para si mesma como uma figura intacta, inquebrável. Ela precisava se sentir fecunda, precisava se partir, dividir em dois, três, quatro. E só encontrava fecundidade no seu trabalho, o seu maior caso de amor.

- Ivo, parto como quem nunca esteve, busco o amor sem números, máscaras, etiquetas. A superficialidade me deixou e agora mergulho, sempre mais fundo, voejo, sempre mais alto – sussurrou Zaíra em uma folha qualquer e voou.


Belisa Parente

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