A desilusão de Afrodite




Afrodite nasceu da atração de opostos, o céu e a terra, noite escura e dia claro. Por ter sido gerada no leito da morte sua ligação foi interrompida por raios e trovões, espalhando, assim, o sêmen divino no mar revolto.
Com a espuma clara desceu à imensidão azul e subiu ao pai em forma de chuva. Quando Afrodite caiu, tudo veio a florescer e já não havia cicatrizes, lembranças do abalo. Durante o percurso, ela provou e foi provada, sentiu o gosto da terra e saboreou suavemente as nuvens rosa do céu. Observou lá de cima os homens e compreendeu que precisava amá-los com todos os seus defeitos, assim como precisava manter-se presa à natura, para quando chegasse à terra nada fosse esquecido.
Afrodite cresceu com essa natureza em si, mas nunca ninguém a venerou, apenas os mais sensíveis percebiam que havia algo diferente naquela menina, como um encanto florescente, como se altos espíritos das mais vastas inteligências estivessem nela de forma singela e inexplicável.
Eis que depois de conhecer as Horas, que a receberam com alegria e a banharam com as melhores essências, Afrodite desabrochou como o girassol arreganhado para o nascente, e todos que a viam ardiam de amor ou ódio. E como se tivesse acordado de um sonho, sentiu que havia chegado a hora de praticar o amor sublime pelo mundo.
Ciumenta, a mãe tentava aproximá-la, mesmo sabendo que ela queria viver a noite. Preocupada com o despeito que a filha causava, naturalmente sedutora, arrastava-a para o dia, mas Afrodite sentia que o outro lado precisava ser vivido. A noite também não entregava os pontos, cobrava com o poder de pai e era sempre atendido.
Assim, ela conheceu melhor os homens, seus medos, suas taras, seu modo, muitas vezes, grosseiro e insensível de encarar o mundo. Afrodite ficou perplexa com as guerras, matança, malícia e corrupção, com a falta da verdade, com a fome planando no peito da sua mãe - sempre tão generosa. “Que besta é o homem meu pai? Que animal iludido e burro!”, cuspiu Afrodite no ímpeto.
Tomada pela compaixão, foi para perto dos homens tentar converter o ódio em amor, a aflição em esperança, o desespero em equilíbrio. Para lhes mostrar o valor do singelo, das pequenas alegrias, afastando o medo, mostrando a magnanimidade do amor que cobre o céu e a terra.
Retornava eu do ardente e empoeirado serão pernambucano quando a encontrei. Envolta numa tempestade, no meio do caos. Desesperada, contou-me que havia se deixado seduzir pelo gozo instantâneo, pelos prazeres mundanos. Enquanto desejava tudo dar e nada pedir, sentiu que havia conhecido a paixão e com ela uma força inexplicável, uma vontade avassaladora de compartilhar o amor com o mundo.
A beleza pura de Afrodite se desfez, o homem havia deturpado seu amor, julgado mal sua paixão, condenado sua desenvoltura, seus atos sempre tão verdadeiros. Agora ela subia a serra triste e solitária, tentando escapar dos outros, buscando restabelecer sua natureza não corrompida. Metade deusa, metade humana, Afrodite se viu como os homens e conheceu, assim, a desilusão.

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Comentários

  1. Nossa!! Vc q escreveu? Gostei muito da visão que vc deu de Afrodite, bem mais proxima ao que ela realmente seria, quando falamos de deusa do amor, é comum a lembrança apenas do amor carnal mas vc lembrou do amor que realmente formou Afrodite. Muito bom, gostei muito.

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  2. Amiga como sempre vc escrevendo lindamente!!
    o caminho do bem se tornou uma leitura obrigatória p mim =)
    beijos!! mari

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